quinta-feira, 5 de abril de 2012

Em Terra de Cego, Quem Tem Olho é Rei

Baixei o volume da música que ecoava na casa inteira para receber quem batia insistente na porta. Eu nunca recebo as pessoas, só o barulho de punhos contra a porta derrama sobre a minha calma e boa fé resmas de instintos violentos. A psicóloga disse para eu nestas alturas olhar-me ao espelho e contar até dez devagar. Para ela é fácil olhar os espelhos. Ela tinha dois olhos. Visão sincronizada e tal. Quem é que quer um buraco inútil na cara? Isso de não ter visão, na realidade é só isso mesmo, não ter olhos. Óculos escuros. Abri a porta.
- Que falta de respeito! Eu preciso da passagem livre ou então tem que pagar por ela! Vai-se haver comigo se não resolve a situação! Quer pagar para estar ali tudo bem, mas não quero o carro ali, a passagem é minha.

Esta velha. Essa velha de merda. Ela e essa passagem do caralho. Passagem, passagem, passagem. Era só o que eu ouvia daquela boca enrugada na última semana. Ela começou a estrabuchar. Alto. Gritaria da alta e estridente. A puta.
- Só um minuto – pedi.
Fui até ao meu quarto. Ouvi-a na porta a gritar palavras que velhinhas não deveriam dizer. Olhei-me no espelho em menos de dez segundos. Voltei até a porta. A velha estava quieta, a respirar pesado com a boca entreaberta. Dentes amarelados.
- A senhora estava a dizer…
- Eu estava a dizer que isto é uma pouca vergonha. Acha que está onde? Que isto é tudo seu? Onde já se viu eu ter que pedir permissão para alguém desocupar a minha entrada, o carro não está ali a fazer nada e estou a pedir a semanas!! A não ser que me pague… Paga e não há mais conversa sobre isso!! Vai pagar ou não?
Ela não parava. Simplesmente não parava de me berrar.
- Não vai dizer nada?! – perguntou-me.
Não, eu não ia dizer absolutamente nada. Ia ficar a olhar para ela até ficar o suficientemente irritada para lhe pegar na cabeça e espetá-la contra a parede. Ela olhava-me com uma raiva absurda e as veias da testa salientavam-se como nunca. Tirei os óculos escuros. A velha olhou para mim por uns escassos segundos e saiu a correr apavorada. Tirei a moeda de 2 cêntimos de dentro do meu olho. Passei a mão para limpar. Fechei a porta. Aumentei o som. Puta da velha.
Interrompido o jantar com alguém a bater a porta. Baixei o volume da música. Um homem alto, passava dos trinta anos, numa roupa esquisita que lhe dava ar de atrasado mental.
- Filha da puta. A minha mãe ontem veio reclamar por causa da passagem e tu tinhas uma merda no olho.
- Era uma moeda.
- Vai-te foder. Ninguém tem culpa de não conduzires. Agora ela está lá em casa, desesperada, assustada com o que tinhas no olho. Ela está disposta a que pagues para o carro ficar ali, se não, vai já tirá-lo!!
Bati com a porta. Encostei-me à parede e respirei fundo. Dirigi-me ao espelho e contei até dez, calmamente. Essa merda de psicóloga. O que é que número têm haver com não ter visão? As pessoas são parvas. Deficientes. Algumas até usam roupas esquisitas.
Apanhei um TST. Em trinta minutos estava no consultório. Cheguei minutos antes da hora da consulta. Da última vez faltei e a secretária telefonou-me e aborreceu-me com porquês. Estúpida, mas gostosa. Tirei uma água da máquina. Fui à casa de banho. Queria olhar-me no espelho e contar até dez, mas não estava lá.
- Que é que aconteceu ao espelho da casa de banho?
- Partiu-se – falou a estúpida – o consultório está sem orçamento e está resolvido não comprar-se outro por enquanto.
Ela disse que eu podia então entrar, que a doutora já estava a minha espera. Pedi-lhe uma caneta emprestada e entrei.
Quando voltei para casa, recostei-me no puf de olhos fechados. Tirei a caneta emprestada do bolso e fiquei a olhar para ela. Sorri.
No dia seguinte, liguei para a doutora.
- Tô, doutora. Tudo bem?
- Sua maníaca. Tu vais parar a cadeia!!
- Como? – perguntei.
- Cadeia sim!! Cadeia é o que tu mereces – e, começa a chorar – Tu furaste-me o olho, sua filha da puta, o olho.
- Olhe no espelho e conte até dez doutora.
Ela continuou a berrar. Deixei o telefone ligado sobre a mesa. Ainda beijei a ponta da caneta antes de aumentar o volume da música.

Gentes